Sobre piolhos e psicanálise
Crianças deveriam fazer psicanálise. Acredito que deveria fazer parte do currículo escolar. Ou, no mínimo, as sessões poderiam ser encaixadas entre as aulas de inglês, ballet e computação. Mapeando-se os riscos futuros, é fácil perceber que a criação sairia bem mais em conta do que o acumulado nos cartões de crédito durante a idade adulta. Sem contar as contingências de custo não financeiro.
Eu peguei piolho no jardim de infância. Eu e todas as crianças da turma. Não seria tão dramático se, dali a uma semana, eu não estivesse arrolada como princesa na apresentação da escola de ballet. O sonho de qualquer mulher de cinco anos de idade. Vestido rodado de renda, sapatinho de verniz com lacinhos e cachos emoldurados por uma tiara de strass.
Meu universo desabou quando me informaram que princesas, obrigatoriamente, deveriam ter cabelos compridos para fazer cachos. E eu não tinha mais cabelos. Havia perdido o papel de princesa por causa de alguma lêndea desgovernada.
Na verdade, o fundo do poço se apresentou para mim com a notícia de que havia sido remanejada para o papel de príncipe. As meninas de cabelos curtos fariam a figuração masculina no pequeno show da escola de dança.
Vi o vestido de Cinderela se transformar em um conjunto de bermuda de cetim azul amarrada no joelho e camisa branca com uma falsa gravatinha de laço presa com uma joaninha no colarinho. Imediatamente, decidi não ir, pois não suportaria tal humilhação. Careca e transexual.
Desnecessário dizer que a decisão não teve valor algum, pois minha mãe me obrigou a participar. Dizia ela que eu não poderia deixar os coleguinhas na mão àquela altura do campeonato, com tudo ensaiado e preparado. Compromisso é compromisso. E como, para meus pais, eu estava sempre linda e perfeita, mesmo que parecesse um mini-travesti, meu sofrimento psíquico era irrelevante. Eles tinham essa idéia de que era pedagogicamente importante para mim, como filha única, interagir o máximo possível com outras crianças.
Até hoje me pergunto se a interpretação de um príncipe medieval, com cílios postiços, não teve influência em meus relacionamentos afetivos.
De qualquer modo, lá fui eu, toda maquiada e travestida, sob os flashes da Pollaroid de meu pai, em direção ao que seria, na minha qüinqüenal percepção, a experimentação do inferno.
Entendi a irreversível dor da condição humana no pas-de-deux com a coleguinha princesa.
Ela pegava as pontas dos babados do vestido para fazer reverências na cadência da música e eu sentia, em câmera lenta, o toque da renda branca que fora minha em sonhos.
Círculos intermináveis, com paradas dolorosas em frente à platéia, me faziam desejar que ela tropeçasse nos laços do sapatinho. Sua humilhação seria a única coisa capaz de atenuar a minha.
Não houve nada disso. E ainda tive que dar dois passos à frente para o agradecimento final.
Ainda hoje suo frio ao cortar o cabelo.
Crianças deveriam fazer psicanálise. Acredito que deveria fazer parte do currículo escolar. Ou, no mínimo, as sessões poderiam ser encaixadas entre as aulas de inglês, ballet e computação. Mapeando-se os riscos futuros, é fácil perceber que a criação sairia bem mais em conta do que o acumulado nos cartões de crédito durante a idade adulta. Sem contar as contingências de custo não financeiro.
Eu peguei piolho no jardim de infância. Eu e todas as crianças da turma. Não seria tão dramático se, dali a uma semana, eu não estivesse arrolada como princesa na apresentação da escola de ballet. O sonho de qualquer mulher de cinco anos de idade. Vestido rodado de renda, sapatinho de verniz com lacinhos e cachos emoldurados por uma tiara de strass.
Meu universo desabou quando me informaram que princesas, obrigatoriamente, deveriam ter cabelos compridos para fazer cachos. E eu não tinha mais cabelos. Havia perdido o papel de princesa por causa de alguma lêndea desgovernada.
Na verdade, o fundo do poço se apresentou para mim com a notícia de que havia sido remanejada para o papel de príncipe. As meninas de cabelos curtos fariam a figuração masculina no pequeno show da escola de dança.
Vi o vestido de Cinderela se transformar em um conjunto de bermuda de cetim azul amarrada no joelho e camisa branca com uma falsa gravatinha de laço presa com uma joaninha no colarinho. Imediatamente, decidi não ir, pois não suportaria tal humilhação. Careca e transexual.
Desnecessário dizer que a decisão não teve valor algum, pois minha mãe me obrigou a participar. Dizia ela que eu não poderia deixar os coleguinhas na mão àquela altura do campeonato, com tudo ensaiado e preparado. Compromisso é compromisso. E como, para meus pais, eu estava sempre linda e perfeita, mesmo que parecesse um mini-travesti, meu sofrimento psíquico era irrelevante. Eles tinham essa idéia de que era pedagogicamente importante para mim, como filha única, interagir o máximo possível com outras crianças.
Até hoje me pergunto se a interpretação de um príncipe medieval, com cílios postiços, não teve influência em meus relacionamentos afetivos.
De qualquer modo, lá fui eu, toda maquiada e travestida, sob os flashes da Pollaroid de meu pai, em direção ao que seria, na minha qüinqüenal percepção, a experimentação do inferno.
Entendi a irreversível dor da condição humana no pas-de-deux com a coleguinha princesa.
Ela pegava as pontas dos babados do vestido para fazer reverências na cadência da música e eu sentia, em câmera lenta, o toque da renda branca que fora minha em sonhos.
Círculos intermináveis, com paradas dolorosas em frente à platéia, me faziam desejar que ela tropeçasse nos laços do sapatinho. Sua humilhação seria a única coisa capaz de atenuar a minha.
Não houve nada disso. E ainda tive que dar dois passos à frente para o agradecimento final.
Ainda hoje suo frio ao cortar o cabelo.
2 comentários:
Hahahaha, muito boa!!! Certamente os profissionais freudianos têm uma explicação que irá relacionar alguma dificuldade ligada ao lado afetivo ao teu evento infantil bizarro. Aliás, não tinham meninos nessa escolinha? E não poderiam colocar cachinhos postiços?
Mas eu te entendo, porque quando era criança tinha o sonho de servir como dama de honra em casamentos, só pra colocar vestinho com lacinho e etc etc... vê se pode! E ainda por cima, amaldiçoava a minha prima porque ela tinha tias casadoiras e eu não!
Mas o pior de tudo é, com certeza, a obrigação de socializar somente por ser filha única. Putz, que saco!!!
Ainda bem que evoluimos e podemos deixar de socializar a qualquer hora!
aninha
BOM, AO MENOS DÁ PRA TRANSFORMAR TUDO EM COMÉDIA - AINDA QUE TENHA LEVADO MUITO TEMPO PARA DIGERIR...RSRSRSRS...BJOS
Postar um comentário