domingo, 7 de setembro de 2008

Oficina de Crônica (projeto bipolar, crônica 1)

Sobre piolhos e psicanálise

Crianças deveriam fazer psicanálise. Acredito que deveria fazer parte do currículo escolar. Ou, no mínimo, as sessões poderiam ser encaixadas entre as aulas de inglês, ballet e computação. Mapeando-se os riscos futuros, é fácil perceber que a criação sairia bem mais em conta do que o acumulado nos cartões de crédito durante a idade adulta. Sem contar as contingências de custo não financeiro.
Eu peguei piolho no jardim de infância. Eu e todas as crianças da turma. Não seria tão dramático se, dali a uma semana, eu não estivesse arrolada como princesa na apresentação da escola de ballet. O sonho de qualquer mulher de cinco anos de idade. Vestido rodado de renda, sapatinho de verniz com lacinhos e cachos emoldurados por uma tiara de strass.
Meu universo desabou quando me informaram que princesas, obrigatoriamente, deveriam ter cabelos compridos para fazer cachos. E eu não tinha mais cabelos. Havia perdido o papel de princesa por causa de alguma lêndea desgovernada.
Na verdade, o fundo do poço se apresentou para mim com a notícia de que havia sido remanejada para o papel de príncipe. As meninas de cabelos curtos fariam a figuração masculina no pequeno show da escola de dança.
Vi o vestido de Cinderela se transformar em um conjunto de bermuda de cetim azul amarrada no joelho e camisa branca com uma falsa gravatinha de laço presa com uma joaninha no colarinho. Imediatamente, decidi não ir, pois não suportaria tal humilhação. Careca e transexual.
Desnecessário dizer que a decisão não teve valor algum, pois minha mãe me obrigou a participar. Dizia ela que eu não poderia deixar os coleguinhas na mão àquela altura do campeonato, com tudo ensaiado e preparado. Compromisso é compromisso. E como, para meus pais, eu estava sempre linda e perfeita, mesmo que parecesse um mini-travesti, meu sofrimento psíquico era irrelevante. Eles tinham essa idéia de que era pedagogicamente importante para mim, como filha única, interagir o máximo possível com outras crianças.
Até hoje me pergunto se a interpretação de um príncipe medieval, com cílios postiços, não teve influência em meus relacionamentos afetivos.
De qualquer modo, lá fui eu, toda maquiada e travestida, sob os flashes da Pollaroid de meu pai, em direção ao que seria, na minha qüinqüenal percepção, a experimentação do inferno.
Entendi a irreversível dor da condição humana no pas-de-deux com a coleguinha princesa.
Ela pegava as pontas dos babados do vestido para fazer reverências na cadência da música e eu sentia, em câmera lenta, o toque da renda branca que fora minha em sonhos.
Círculos intermináveis, com paradas dolorosas em frente à platéia, me faziam desejar que ela tropeçasse nos laços do sapatinho. Sua humilhação seria a única coisa capaz de atenuar a minha.
Não houve nada disso. E ainda tive que dar dois passos à frente para o agradecimento final.
Ainda hoje suo frio ao cortar o cabelo.

2 comentários:

Anônimo disse...

Hahahaha, muito boa!!! Certamente os profissionais freudianos têm uma explicação que irá relacionar alguma dificuldade ligada ao lado afetivo ao teu evento infantil bizarro. Aliás, não tinham meninos nessa escolinha? E não poderiam colocar cachinhos postiços?
Mas eu te entendo, porque quando era criança tinha o sonho de servir como dama de honra em casamentos, só pra colocar vestinho com lacinho e etc etc... vê se pode! E ainda por cima, amaldiçoava a minha prima porque ela tinha tias casadoiras e eu não!
Mas o pior de tudo é, com certeza, a obrigação de socializar somente por ser filha única. Putz, que saco!!!
Ainda bem que evoluimos e podemos deixar de socializar a qualquer hora!

aninha

Luciana F. disse...

BOM, AO MENOS DÁ PRA TRANSFORMAR TUDO EM COMÉDIA - AINDA QUE TENHA LEVADO MUITO TEMPO PARA DIGERIR...RSRSRSRS...BJOS