terça-feira, 9 de setembro de 2008

Oficina de Crônica (projeto bipolar, crônica 2)

Complexo doce


A anandamina, lipídio presente no chocolate, causa os mesmos efeitos da maconha. É o que andaram dizendo alguns pesquisadores tempos atrás.
Eu costumo procurar por explicações científicas para meus vícios. Por dois motivos: justificam facilmente a reincidência (ponho a culpa nos neurotransmissores) e me desobrigam a analisar algum complexo escondido em minha psique atrapalhada.
Mas há vezes em que nem eu me convenço.
Meu apego à neurociência é menor do que a lembrança de meu pai chegando do trabalho com um saquinho de papel com a marca da Docelândia.
O barulho da chave na porta me levava correndo a recepcioná-lo, na esperança de que tirasse do bolso do paletó o pacotinho de delícias.
Não havia dia certo, nem marca preferida de guloseima – mas o gênero não variava: chocolate.
Eram apenas duas ou três barrinhas, bem fininhas, de chocolate meio-amargo ou ao leite, recheado de morango.
O segundo sempre foi meu predileto. A despeito da menor quantidade de chocolate, a embalagem era mais bonita e o doce, em si, guardava mistérios coloridos a cada mordida.
O bom é que eu já podia comer assim que ele chegasse. Nunca houve ordem para esperar a janta ou questionamento acerca de minha refeição anterior. É como se aquele acontecimento fosse independente das demais atividades do dia.
Havia, sim, um comentário risonho de meu pai para que não comesse tudo de uma vez, para não passar mal – o que eu mal ouvia em meio à distração de abrir o saquinho e descobrir o que havia recebido. Meu coração acelerava nos segundos em que meus olhos focavam o interior do pacote.
Eu já sabia que era chocolate e, ainda assim, gostava da excitação que precedia a descoberta.
Acho que tanto meu pai como eu éramos conscientes de que a surpresa não era mais relevante do que o gesto.
E aquele era definitivamente um gesto dos mais doces.
Em minha memória, até a calculadora científica de meu pai (e sua máquina de escrever, seus livros de História, suas fotos de viagens!) cheirava a chocolate.
Hoje, o chocolate alivia o pânico, neutraliza a raiva e alimenta os tempos de felicidade.
É como a redoma de vozes familiares soando na cozinha. Fecham-se os olhos e ouvem-se risadas altas, em meio a vapores aromáticos.
Menos mal.
Ainda bem que meu pai não me levava silêncios.

2 comentários:

Marcelo Oronoz disse...

Quando eu morava em Novo Hamburgo, devia ter uns 3 anos, meu pai tinha um funcionário chamado Otomar. O Seu Otomar, já idoso, tinha sempre no bolso aqueles chocolatinhos da Neugebauer, com um envoltório branco, seco, antigo...até acho que ainda existe. E sempre que o Seu Otomar me via, tirava do bolso um daqueles. Eu nem lembro mais o rosto do Seu Otomar, mas lembro bem que a única coisa que me interessava em sua amizade eram os chocolates. Um pouco mais tarde, lembro bem da hora que meu pai chegava em casa, carregado de sacos de supermercado e eu e meu irmão saíamos correndo para ajudá-lo a descarregar e pegar nossos chocolates Surpresa, com a foto de algum leopardo, leão, onça ou, qualquer outro bicho desses. "Old pictures that I´ll always see"

Luciana F. disse...

Sim, o Refeição, ainda existe. Meu pai me trazia Refeição e Stick, que hj virou Stickadinho ou algo assim.
Como essas coisas marcam né....Aliás, as memórias baseadas em gosto, cheiro, tato, etc...são as que mais ficam.....