quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Oficina de Crônica (projeto bipolar, crônica 3)

Do posicionamento filosófico das ovelhas

Deus não existe. É a verdade pura e simples. Não pretendo aqui fazer declarações para chocar pessoa alguma, estou apenas constatando um fato.
E tanto não quero me incomodar com os tementes, que resolvi evitar a discussão da inicial maiúscula e comecei a frase com o próprio objeto da minha descrença. Inicial maiúscula porque assim manda nossa gramática. Resolvido.
Em 1988, promulgaram a primeira Constituição plenamente democrática do Brasil, empossaram a primeira mulher no comando do Paquistão, criaram o Tocantins e mataram Chico Mendes, o seringueiro. E Tina Turner cantou para o Maracanã lotado.
No mesmo ano, numa manhã de domingo, cuja exatidão de calendário bloqueei para todo o sempre, eu entrei pelo corredor de uma igreja, segurando uma vela e um terço.
Na minha frente, todas as outras crianças. Eu era a mais alta e sempre ficava no final das filas.
Mas a altura não era problema se comparada ao ridículo total da situação.
A instrução geral para o traje da primeira comunhão era de que as meninas usariam um vestido branco longo, simulando vestes de anjos – e com a devida sobriedade no estilo, já que a “Casa do Senhor” não era palco para desfile de moda e outras frivolidades.
Desnecessário dizer que metade das mães não seguiu o padrão estabelecido e permitiu que suas meninas passassem pelo fiasco com modelos menos austeros.
Minha mãe estava na outra metade.
Ouvi-a comentando que achava absurdo o incentivo à futilidade naquele momento coletivo de realização.
Vejam que, sem intenção, me empurravam para uma comuna estética.
Um saco branco de piquet, com uma coroa de flores desmaiadas na cabeça, arrastando-se para o abate moral. Uma imagem de abajur antigo mesclada com boneco de isopor em presépio. Era eu.
Tudo isso porque algum esperto resolveu traduzir o equivalente hebraico de “moça” para “virgem”. Pronto, daí em diante a coisa toda desandou.
Toda parafernália da pureza artificial mandada fazer na costureira do bairro em função de algo que eu não entendia bem – e duvido que a maioria dos presentes entendesse bem alguma coisa que não fosse o caminho para a churrascaria.
E nem adiantava reclamar a meu pai, ateu convicto e partidário da não-criação de caso com a esposa católica, que só fazia rir e consentir com a cabeça. Ele só me apoiaria anos depois quando eu recusei a crisma e manifestei minha inconformidade de princípios com a igreja.
O padre me deu a tal da hóstia e, ato-contínuo, ela grudou no céu da boca.
E não havia jeito de tirá-la de lá. Pensei que, no meio daquele papo de ovelhas e cordeiros, eu teria uma chance de enfiar o dedo na boca e extirpar a agonia.
Não tive sorte. Tampouco minha língua, que rebolava sem parar e, na hóstia, só fazia cócegas.
Tudo piorava, inclusive meu cabelo, que já se enrolava por causa do suor.
No almoço da família, compareci sem poder trocar de roupa. Vexame bom é aquele que dura o dia todo.
Hoje, se vejo que minha descrença se abala, trato de lembrar do vestido de piquet branco. Tiro e queda.

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