quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Da escritora wannabe que habita em mim...

"Ele caminhava em linha reta, preferencialmente na parte da calçada em que as pedras eram iguais. Não porque ele tivesse algum tipo de transtorno obsessivo-compulsivo, mas porque essa necessidade inconsciente de ser organizado e cartesiano era característica sua. E ele gostava de pensar assim, que este seu traço era genético, era sua marca. Às vezes, até orgulhava-se de ser repreendido na repartição por seguir as regras de forma tão cega.
Ele trabalhava no Departamento de Concessão de Certidões Especiais da Secretaria Municipal de Planejamento. Era subchefe-adjunto de classe B, nível 5. Estava ali há cerca de dez anos e já fazia planos para quando passasse à classe A, pois dali em diante, a chefia estaria mais perto, talvez mais uns 10 anos e seria ele quem diretamente se reportaria ao Secretário de Planejamento do Município.
Carlos, esse era seu nome, sentia-se gratificado em, dia após dia, abrir sua gaveta às oito e meia da manhã, depositar os doze carimbos sobre a mesa e, incessantemente, utilizá-los até as seis da tarde, quando deixava sua sala, pegava seu carro e ia para casa, ouvindo as notícias do dia. O trajeto era suficiente para que ele se atualizasse, trinta minutos na hora do rush, sempre pelo mesmo caminho – até havia outro caminho mais rápido, mas Carlos preferia manter seu trajeto, mais seguro, de ruas mais iluminadas, paisagem mais limpa.
Sua esposa, professora da rede pública estadual, já o esperava em casa, como de costume – ela não trabalhava à tarde e podia tranquilamente tomar conta dos afazeres domésticos. Como era terça-feira, havia preparado a lasanha de brócolis com massa integral, eis que Carlos vinha cuidando da alimentação desde que seu colesterol apresentou-se perto do índice limítrofe da normalidade. Logo ele, que sempre teve uma alimentação saudável, praticou exercícios físicos regulares e não tinha grandes problemas emocionais, ao contrário, era um sujeito calmo e controlado. Seu cunhado, por exemplo, fumante inveterado, consumidor de altas doses de destilados de baixa categoria e descontroladamente carnívoro, além de não pagar a pensão devida aos filhos e nunca ser preso, não tem problema de colesterol. Inexplicável.
Mas Carlos acreditava que, se levasse uma vida regrada, como sua mãe sempre lhe ensinara, não teria maiores problemas. Até porque gostava de ser exemplo para o filho de oito anos, já que ele mesmo não conheceu o pai – sua mãe, filha de militares, casou-se cedo, nos Estados Unidos, com um oficial do Exército americano, o qual morreu em combate quando Dona Julia ainda estava grávida.
Carlos orgulhava-se do pai, mesmo sem ter tido a chance de conhecê-lo. Afinal de contas, ele fora um herói e morrera lutando por sua pátria. Apenas achava estranho que sua mãe não tivesse outras fotos ou recordações do falecido marido, ao menos a carta do governo americano comunicando a morte em combate e prestando suas condolências. Gostaria de mostrar a seu filho isso tudo, para que se orgulhasse do avô e tivesse consciência da linhagem de homens bravos e cumpridores dos seus deveres da qual fazia parte. Uma pena. Ainda mais agora que Dona Julia estava doente e já não lembrava mais das histórias dos gloriosos tempos em que vivera na Califórnia. Ela inclusive, nos últimos tempos, vinha criando histórias fantasiosas sobre sua experiência nos Estados Unidos na década de 60. Mas Carlos creditava a confusão à doença – pobre mulher, criou o filho praticamente sozinha em uma época em que as mulheres tinham poucas chances profissionais e hoje, quando teria condições de aproveitar mais a vida, é acometida por uma doença dessas.
Carlos, como filho cuidadoso que era, tomava todas as providências para que Dona Julia tivesse o atendimento necessário e a atenção devida e não se importava com suas confusões mentais.
Naquela terça-feira à noite, enquanto assistia ao jornal da noite e comia sua gelatina dietética de sobremesa, Carlos recebe um telefonema perturbador.
- Rosaura, diga à mamãe que chego aí em quinze minutos!
Nervoso, Carlos diz à esposa que a enfermeira acaba de ligar e que Dona Julia não passa bem e demanda sua presença urgentemente. Ele pega então as chaves do carro e dirige-se à casa de sua mãe em alta velocidade, passando sinais vermelhos e não se importando com eventuais multas que possa vir a receber – em casos extremos, Carlos sempre agiu assim, como se em suas entranhas habitasse silente um ser inconseqüente, só despertado por ações instintivas intensas.
Entrando correndo pela porta do quarto de Dona Julia, onde a enfermeira o aguardava, ouviu de sua mãe:
- Charlie, my baby (ele odiava ser chamado assim, afinal, recebera o nome de Carlos em homenagem ao imperador romano e sua mãe já não vivia há décadas nos Estados Unidos, motivo pelo qual esses diminutivos eram extremamente desnecessários), creio que mamãe não terá mais muito tempo e precisa entregar-lhe parte de sua herança agora.
- O que é isso mamãe, que bobagem, isso é hora de falar em dinheiro?
- Honey, please, deixe-nos a sós, disse Dona Julia à enfermeira. – Charlie, pegue aquela caixa e traga aqui, sim?
Carlos não gostava de ver sua mãe assim, alucinando. O que tinha uma caixa velha em cima do armário a ver com tudo isso? Sorte sua, ele pensava, que herdara a genética de seu pai militar, cuja retidão de pensamento talvez pudesse prevenir-lhe de uma futura doença cerebral degenerativa.
- Você quer saber quem foi seu pai?
- Ora, mamãe, eu sei quem foi meu pai, apesar de não tê-lo conhecido.
- Sente-se aqui perto, darling, e ouça. Em uma noite do verão de 1965, eu e a filha do Coronel Brooks, superior de seu avô na base militar, fugimos para conhecer Hollywood, aquele lugar efervescente que víamos no cinema e do qual ouvíamos histórias incríveis.
Carlos definitivamente não queria saber das peraltices da adolescência de sua mãe, mas enfim, em horas como essas, há que se ter paciência.
- Eu tinha 17 anos e Christina, 21, o que facilitava nosso trânsito pela noite boêmia em que encontraríamos todas as estrelas que víamos nos filmes e que circulavam pelos clubes noturnos mais chiques de Los Angeles. E dinheiro não era problema, já que recebíamos nossas polpudas mesadas e não tínhamos onde gastar. A base militar era uma prisão sem regalias.
Por um momento, Carlos teve certeza que a mãe enlouquecera de vez, eis que passou a vida ouvindo as historias de famílias felizes residindo nas lindas casinhas brancas das bases militares. Mas respirou fundo.
- Estacionamos o carro em um beco, umas duas ruas de nosso destino de glamour, para que não fosse reconhecido por algum conhecido – os militares eventualmente passeavam a noite pela área. Passamos pela frente de um bar onde, da porta, viam-se mulheres dançando sobre as mesas e homens falando alto, todos bebendo ao som de uma música altíssima. Ficamos assustadas quando um deles veio à porta e perguntou, visivelmente alcoolizado, se queríamos entrar, pois ali é que estava a diversão e não nos tapetes vermelhos do bar de um five-star-hotel. Olhamo-nos. Eram os anos 60. Entramos.
A esta altura, Carlos já suspeitava de que alguma parte da história fosse efetivamente verdadeira, ainda que desagradável. Temeu pela continuação, pois sabia bem o que se fazia nos anos 60 – sua mãe levou-o uma ocasião para assistir Hair, o que o deixou deveras desconfortável, ainda que eventualmente (e secretamente) fascinado pela poesia por trás das músicas.
- Ao entrarmos, fomos engolidas por aquele tumulto todo e já cercadas de gente, começamos a beber. Depois da segunda dose de whisky – eu nunca havia bebido antes -, mal entendia o que falava aquela gente toda e, tonta, saí pelo bar a procurar por Christina, a qual eu havia perdido de vista há tempos. Ao atravessar a sala de jogos, onde várias pessoas circundavam duas enormes mesas de sinuca, deparei-me com um homem que insistia em bloquear a minha passagem. Uma criatura vil e grosseira, visivelmente bêbado e mal vestido, envolto na fumaça de seu próprio cigarro e empunhando um copo de whisky vazio.
- E você não chamou a segurança, mamãe?
Dona Julia apenas sorriu e continuou:
- Ele pedia, insistentemente, que eu lhe trouxesse outra dose, provavelmente pensando que eu era garçonete ou coisa que o valha. Respondi que não trabalhava ali e que ele mesmo fosse ao balcão se quisesse beber, não sendo, contudo, aconselhável que o fizesse, pois seu estado era deplorável e ele estava constrangendo as pessoas. O homem olhou-me de cima a baixo com uma expressão séria e caiu na gargalhada, dizendo a todos que ali havia uma mulher com idade para ser sua filha e com pretensões de ser sua mãe! Todos riram, deixando-me cada vez mais furiosa e com raiva daquele sujeito desqualificado e metido a engraçadinho. Saí dali, dando-lhe as costas, encontrei Christina e fomo- nos dirigindo à saída. Chegando à porta, vejo o bêbado inconveniente com o braço estendido, bloqueando a saída, rindo e dizendo, ao mesmo tempo que me olhava como um cão a um filé: - Hmm. Love is a fat turkey and everyday is thanksgiving. C’mon, stay and join me for another drink, darling.
- Ok, mamãe, não estou entendendo aonde você quer chegar e esta história realmente não me agrada. E o que tem a ver papai com suas aventuras juvenis? Aposto que ele não aprovaria este tipo de coisa. Bom, vejo que a senhora está melhor e creio que posso voltar para casa. Rosaura está aqui e qualquer emergência...
Dona Julia o interrompeu bruscamente, como se nem o tivesse escutado:
- Eu fiquei para outro drink...Era setembro, ainda era verão e o calor daquele lugar me deixava tonta. Depois de uma hora de conversa, descobri que o tal bêbado era nada menos do que Charles Bukowski e que sua fama fazia jus à realidade. A noite foi longa...Dona Julia fez uma pausa, suspirou e, como que olhando para o nada, continuou: - Retornei ao Brasil em maio do ano seguinte e você nasceu em junho.
Carlos não era do tipo de pessoa que costumava desmaiar, ao contrário, sempre teve saúde de ferro e nervos de aço, do que, aliás, sempre se orgulhava. Com exceção do dia do nascimento de seu filho, em que resolveu filmar o parto e desmaiou no bloco cirúrgico. Mas nesse dia, segundo conta, não tinha se alimentado corretamente e desmaiou devido à queda de pressão, não porque tivesse algum problema em assistir à sua mulher urrando de dor e a todo aquele sangue. De maneira alguma.
- Rosaura, ajude aqui, por favor! chamou Dona Julia.
Ao abrir os olhos, Carlos pensou, por um segundo, que havia tido um pesadelo. Virou-se e deu-se conta que estava deitado no chão na frente da cama de sua mãe, tendo a enfermeira ajoelhada ao seu lado com um copo na mão e o rosto apreensivo. Não conseguia raciocinar.
- Eu me recuso a ser filho de um bêbado, psicótico, pervertido, que foi idolatrado sabe-se lá porque como poeta de uma geração imbecil! Como direi a meu filho que seu avô é autor de um livro intitulado Notas de Um Velho Safado?! Como?! Como você pode fazer isso comigo, mamãe? Meu Deus!!! Minha vida acabou! Com que cara vou chegar no trabalho amanhã? O que vou dizer na reunião do condomínio? E na reunião de pais na escola do Junior? Meu Deus!!! É meu fim!!! É meu fim!!!
Dona Julia apenas observava enquanto Carlos, ainda deitado no chão e com as mãos na cabeça, esbravejava e se lamentava.
- Oh, não!!! Meu nome, mamãe, meu nome!!! Você disse que meu nome havia sido uma homenagem a Carlos Magno, mamãe, ao imperador!!!
- Eu nunca lhe disse isso. Quando você era criança, gostava de ler histórias sobre impérios, guerras, conquistas. Ficava fantasiando essas coisas e, depois, são coisas de garoto, eu não teria porque acabar com sua ilusão. Só não pensei que a esta altura da vida você ainda pensasse nesse tipo de coisa, disse Dona Julia contendo o riso.
Carlos levantou-se, pegou as chaves do carro e saiu dali transtornado. Não sabia como daria a notícia à mulher. Que vergonha. Já via seu cunhado fazendo piadas a seu respeito. Na associação do bairro, certamente iriam tirar-lhe o cargo de vice-presidente. Como uma pessoa pode ter a vida assim destruída? Ele não se conformava.
Entrou no carro e saiu sem rumo, diferentemente das outras vezes que saíra da casa de sua mãe, sempre pelo mesmo trajeto, primeira à direita, segunda à esquerda, alguns quarteirões e já estava em sua rua. Mas não naquela noite. Já eram mais de onze e meia da noite e Carlos rodava sem destino pela cidade.
Aquele cenário era-lhe totalmente novo, pois não costumava sair à noite, especialmente em dia de semana. Sentia-se em outro planeta. Na verdade, sentia-se um alienígena, um estrangeiro. Vivia naquela cidade há quarenta anos e agora não a reconhecia. E não reconhecia a si mesmo.
Buscava lembranças da infância que pudessem fazer com que esquecesse da notícia que acabara de ter, mas, por mais que se esforçasse, seu cérebro agora pregava-lhe um peça: lembrava apenas de coisas que lhe indicavam sua real ascendência, coisas até então inexplicáveis, coisas que guardava a sete chaves de si mesmo.
Perguntava-se o que, de fato, poderia ter herdado do velho poeta maldito? Será que vivera num baile de máscaras até hoje? Será que, em verdade, sua inclinação prussiana a todo tipo de regramento social não seria um mecanismo de defesa contra sua carga genética? Sim, porque se em suas veias corria o sangue alcoólatra, louco, perverso e doente de Bukowski, em algum ponto de sua existência, deveria ter havido uma decisão, ainda que inconsciente, de andar pelo outro lado da rua.
Estacionou o carro em um posto de gasolina. Respirou fundo, atirou a cabeça para trás. Percebeu uma música tocando. Era seu rádio. Não estava na estação de notícias como de costume. Talvez, no decorrer do caminho, tenha ligado ali sem querer. Tocava Bob Dylan, num tom rasgado, mas inquietante. Ao levar, instintivamente, a mão ao botão do rádio, recuou e resolveu deixar a música tocar. Sentiu um frio no estômago, como se estivesse cometendo algum crime e pudesse ser descoberto a qualquer momento. Seria já influência do velho safado? Não saberia dizer, mas gostou do que sentiu. A partir desse momento, decidiu permitir que outras sensações lhe perturbassem.
A noite estava clara e quente. Desceu do carro e comprou uma cerveja. Há muito não bebia. Já eram duas da manhã e seu telefone tocou. Viu o aparelho vibrar no banco do lado. Ficou ali, imóvel. Pensou em seu pai e sorriu para si mesmo.
Naquela noite, ele não voltou para casa."

3 comentários:

Luciana F. disse...

AGORA ENTENDI PQ TEMOS QUE REVISAR AS COISAS...MAS EU ODEIO REVISAR, ENTÃO, AS CORREÇOES FICAM PARA OUTRA HORA...

Luciana F. disse...

Descobri pq achei ruim quando li depois de pronto: eu nào escrevi tudo que queria com medo de que as pessoas achassem louco demais, podre demais, então, tolhi a viagem que passava pela minha mente e fui contida na narrativa...Ficou muito morno, perto da ebulição que eu tinha na cabeça.....Vou ver se reescrevo sem mordaças morais e vamos ver o que acontece...

Anônimo disse...

I loved reading it. Truly entertaining, full of peculiar personality traits and random habits. Your signature style is also the subtle comedy that gets people like me laughing out loud.

Some constructive criticism... or more like what I'd like to have read...I'd elaborate more on what went on in Carlos' mind when faced with his new reality.

Anyway, will you stop giving me materials to read?? I'm trying to get the freaking neonatal certification!

Love
Katz mommy2